CINEMÁTICA DO PORTO: A CIDADE PELA LENTE DE MANOEL DE OLIVEIRA
CINEMÁTICA DO PORTO: A CIDADE PELA LENTE DE MANOEL DE OLIVEIRA
Sempre filmei o Porto, não para mostrar o que se oferece de imediato ao olhar, mas para escutar o que nele permanece por dizer. Esta cidade é para mim mais do que ruas, pedras ou neblina. É uma memória em movimento, uma respiração antiga, feita de séculos. Talvez por isso nunca tenha deixado de a filmar: porque ela, como o cinema, contém em si o mistério do tempo.
Uma cidade que se revela devagar
Filmar o Porto é como regressar a uma casa onde cada objeto tem a sua história. Quando realizei Douro, Faina Fluvial, em 1931, procurei captar o labor humano e o pulsar do rio, essa cadência entre o esforço e a corrente. Não quis embelezar, mas sim revelar. A zona ribeirinha, com os seus estivadores e o seu ritmo quase coreográfico, foi o primeiro território onde compreendi que a cidade é matéria viva. E que o cinema tem o dever de escutá-la.
Mais tarde, com Aniki-Bobó, voltei ao mesmo espaço, mas sob um outro prisma: o da infância. Filmar aquelas crianças pobres que corriam pelas ruas da Ribeira, entre pequenas transgressões e grandes silêncios, foi encontrar no quotidiano a poesia que o real tantas vezes esconde. A cidade, nesse filme, não é apenas pano de fundo. É uma educadora severa, uma testemunha muda da condição humana.
E em Porto da Minha Infância, já no ocaso do século e da vida, regressei às memórias da juventude. Caminhei com a câmara pelos lugares que me formaram, tentando não tanto reconstruí-los, mas evocar aquilo que permanece quando tudo o resto muda: o cheiro de uma casa, o som de um corredor, a luz sobre os rostos que já partiram. Era, mais do que um documentário, uma confidência. Um reencontro entre o homem e a cidade que o viu crescer.
A lentidão é forma de respeito
Sempre me disseram que os meus filmes eram lentos. Talvez. Mas o Porto também o é. Esta cidade não se mostra a quem passa depressa. Para a compreender, é preciso subir as escadas antigas com calma, parar na esquina onde a luz desenha o granito, deixar-se ficar na margem do Douro sem perguntar quanto tempo falta para o próximo plano.
Cada filme meu foi um esforço para não trair esse tempo interno da cidade. Um tempo denso, onde as histórias não se revelam imediatamente, decantam-se. O Porto tem essa sabedoria. Deixa que tudo amadureça, mesmo aquilo que parece já ter terminado.
Uma cidade que continua a projetar-se
Hoje, mesmo já longe das câmaras, sei que o Porto continua a oferecer imagens a quem souber olhar. Os telhados, os reflexos no rio, os gestos simples, tudo ainda pulsa com a mesma intensidade que me movia. Mas é preciso estar disposto a ver como se vê um filme meu: com atenção, com paciência, com amor pelo que permanece fora de foco.
E há ainda lugares onde a cidade respira com essa mesma cadência. Não são muitos. Mas existem. Espaços onde o ruído cede ao murmúrio, onde o tempo desacelera e convida à contemplação. Um deles é o Vila Foz Hotel & Spa. Ali, à beira do Atlântico, o Porto parece sussurrar em voz baixa, como nas pausas densas de um diálogo meu. O mar, a arquitetura serena, a luz que entra pelas janelas, tudo ali se organiza como num plano bem composto. Não sei se é cinema. Mas é, sem dúvida, uma forma de ver.
Ver é uma arte. Filmá-la, uma forma de amar. O Porto ensinou-me ambas. E por isso, continuo a senti-lo, mesmo de olhos fechados.